Comida, Sustentabilidade, Divagações

As hortas da Enoteca

A terra é como uma pessoa. Não adianta você só olhar pra ela e imaginar que sabe tudo. Tem que ir a fundo, ver por dentro, esperar que ela se mostre.

Nós nos mudamos cerca de um ano atrás pra fora do centro de Sampa – morávamos num apê ali no Jardãns –  para poder ter espaço para plantar. Pois é. Somos parte da geração neoarcadista que está voltando a colocar a mão na massa. Bobeiras e modinhas à parte, conheço realmente muita gente que está surtando e saindo da cidade, pra mais perto ou mais longe, voltando a ter uma vida mais próxima da terra  – plantando ou não.

A vontade de partir para um terreno grande onde pudéssemos ter plantas e bichos não foi apenas para melhorar a qualidade de vida – que inegavelmente, muda para melhor… – mas para caminhar para o objetivo de tornar a Enoteca um restaurante verdadeiramente sustentável.

Não adianta só reciclar o lixo. Não adianta só coletar água. Tem que fazer compostagem. Tentar usar energias alternativas. Educar os clientes. Trabalhar com sazonalidade – mesmo. Ter cardápio rotativo. Incentivar os cozinheiros a serem criativos. Estimular a pequena produção. Resgatar ingredientes e receitas locais. Valorizar o material humano. Usar alimentos orgânicos. Reaproveitar. Ter resíduo zero. Não usar tanto papel.  É um trampo e tanto.

Pensando na parte de fornecimento, é inegável que um restaurante convencional é um dos estabelecimentos menos sustentáveis que existem: é pouca gente cozinhando pra muita gente, ingredientes comuns, ingredientes sempre iguais, pratos sempre iguais. Praticamente uma monocultura alimentícia, por mais alta gastronomia que seja. Nossa idéia é justamente quebrar esse conceito, e fazer o caminho inverno: partir não só do ingrediente para o prato, mas do produtor para o prato. Mais do que trabalhar com a sazonalidade, é trabalhar com os produtores. O que fulano de tal tem hoje? O que acha de ajudarmos cicrano e comprarmos mais dele essa semana? Vamos falar para Beltrano que podemos arcar com a compra da produção inteira e depois revendemos o excedente?  Partindo disso, o caminho natural foi começar a plantar.

Comecei com as ervas – convenhamos, é o mais fácil. Depois, verduras, hortaliças. Pancs. E agora estou na fase dos legumes. Depois de um ano e meio, conseguimos fornecer 100% de ervas e verduras para a Enoteca. E ainda sobra pra gente, pros caseiros, pra família. Tudo se veneno, obviamente. O segundo passo são legumes – abobrinhas, abóboras, milhos, feijões, mandiocas, carás, quiabos, inhames, cenouras, rabanetes. Requer mais espaço, mais tempo e mais jeito pra coisa – mas estou aprendendo. E com gente boa me ajudando, logo logo teremos também produção de várias coisas para a Enoteca. A idéia, embora utópica, seja um dia fornecer 100% de todo o hortifruti. E por falar em fruti, esse é o último desafio. As frutas. Já plantei umas 15 variedades de frutíferas aqui no terreno – mas a maioria começa a frutificar só depois de 5 ou 10 anos. As mais rápidas como melões, melancias, morangos, amoras e framboesas, além de mamões, jaracatiás…. foram pra terra esse ano e estou ainda fazendo testes.

Essa é a questão. Sustentabilidade é muito maior do que pensamos, muito mais complexo, e no fundo, simples de executar. Basta não ter preguiça.

O lance é que não adianta só comprar orgânicos. Seja pra casa ou para um restaurante. Pra baixar o custo e fazer a cadeia mais redonda, é preciso produzir. Até para nossa própria saúde mental. Quem nunca acompanhou o nascimento e crescimento de um milho na própria horta, com grãos dados por amigos e plantado pela sua própria mão, ainda não viveu. Coloque na sua lista de coisas a fazer.

Como disse antes, a terra  tem lá seus caprichos, como uma pessoa. Você demora a conhecer, e ela sempre vai te surpreender com coisas novas. Uma nascente de água. Um cantinho onde os tomates dão que nem chuchu. Outro canto que nada vai. Uma fileira que você precisa sempre adubar, outra que não. Lugares que nascem plantas espontaneamente. Canteiros que brotam do nada e te presenteiam com almeirões roxos, capuchinhas, picão, quebra pedra, nascendo sem pedir permissão.

Eu estou na minha fase de namoro com meu terreno. Descobrindo seus cantinhos, tendo paciência, esperando para ver onde cada coisa nasce melhor, cuidando.

O processo de descoberta e de entendimento da terra é demorado, é lento, tem que ser maturado. O tempo do plantio é diferente do tempo que nos ensinaram entre abrir um saquinho e outro de comida pronta. Existem plantas que levam meses para crescerem, e alguns minutos para serem comidas. As mandiocas levam mais de ano. As cenouras, meses. As frutas, algumas décadas. Redescobrir o tempo dessa espera e o valor disso… ah, como acaba nos ensinado muita coisa.

Só de uma horta  estão saindo abobrinhas, abóboras, tomates, vagens, favas, melões, melancias, taiobas, inhames, maracujás, chuchus, beringelas, alfaces, repolhos, agrião, radiccio, cavolos, capuchinhas, agrião crioulo, Mangaritos, batatas doces, gengibre, cúrcuma, milhos, mandiocas, caras moela e otras cositas más. Primaverão bombando, e as plantinhas estão vindo com força total. Dá pra se perder durante horas no meio da horta só pra ficar vendo as coisas brotarem.

Comecei com uma hortinha solitária no meio do terreno, e hoje temos quatro hortas, além de cabras para leite e galinhas para ovos. Em casa, não compro mais ovos nem leite, nem iogurte, nem hortaliças. No plantio, não uso nenhum tipo de veneno. Só adubo  – que fazemos aqui com compostagem do próprio terreno – e água de poço.

Tentamos fazer plantios mixtos e colocar uma variedade grande de espécies para que elas convivam. Mas não sou expert nisso, então muita coisa dá errado. Vai na tentativa e erro – e com o tempo, vou estudando mais de permacultura, biodinâmica e agroecologia. E pedindo ajuda pros amigos, claro. Afinal, são só 5000 metros de terreno, muita vontade de fazer muita coisa e muito, mas muito trabalho aí pela frente.

19/10/2016
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