Divagações

O buraco no estômago é bem mais embaixo

Acho o máximo quando a galera me fala: você só deve comer de manhã se acordar com fome. Então. Eu não sou do tipo que acorda com fome, sou do tipo que acorda ‘por causa’ da fome. Pra eu acordar sem fome tenho que ter comido muito e muito mal na noite seguinte, ou então exagerei na festa, ou estou doente. Caso contrário, meu despertador é meu estômago. Essa coisa de comer ou não comer pra mim, na verdade, é muito mais um tratado psico-filosófico do que coisa de nutricionista. Digo por experiência própria, eu comecei como nutricionista e fui acabar na cozinha.

Nossa sociedade come mal, come muito e não sabe mais o que é fome – isso é um fato. Mas a histeria que tomou conta da galera com esse lance de dietas perfeitas, super alimentos e divisão de bandidos e mocinhos entre os alimentos às vezes me dá preguiça. Uma vida sem indulgências e sem o prazer que a comida pode te proporcionar se torna seca e rígida – como alguns corpos e personalidades que vejo por aí desfilando na rua. Claro que dentro do meu pequeno mundinho deslocado da realidade, entre alimentos orgânicos, hortas, vinhos naturais e zero produto industrializado – não sou muito parâmetro quando falo em indulgências.

Meu prazer nunca vai será matar um hamburgão ou um pote de sorvete na frente da televisão. Minhas indulgências são mais me permitir um copão de leite cru fresquinho quando chega na Enoteca lá de Botucatu ( de vaca, sim, a gente não digere essa joça direito, sim, o melhor seria fermentar, sim, mas quando chega o galão de Gir cru e fresco não dá pra resistir ); pular a corrida de manhã pra tomar um café reforçado com a amiga vizinha, um pedaço daquele chocolate super fora de hora ( por exemplo antes do jantar ) mas que faz você lembrar que a vida é mais doce do que parece. Repetir aquele prato de arroz|feijao|ovo|farofa mesmo você sabendo que está saciado, por aí vai. A vida é muito curta pra não nos mimarmos um pouco. O problema é que muita gente confunde indulgências e prazeres com hábitos destrutivos.

A vida é muito curta pra não nos mimarmos um pouco. ⠀

O problema é que muita gente confunde indulgência e mimo com hábitos destrutivos. Comer um quilo de sorvete ou uma pizza inteira assistindo filme ( ou pra turma da bolha “saudável”, quilos de trufas raw ou metade dum pote de pasta de castanha – infelizmente nessa última eu me incluo ) pode até parecer prazeiroso – mas só pra quem não tem a mínima idéia do que isso está fazendo com seu corpo. ⠀

Hoje em dia minhas indulgências alimentares são bem mais incomuns do que as da maioria da galera – talvez porque tenha eu tenha percebido que uma coisa vai me fazer mal já não me dá mais tanto prazer em comer. Tipo aquelas pessoas que você se afasta pois percebe que não te fazem bem. É igual. Mas a gente se sabota o tempo inteiro com comportamentos absolutamente abusivos à nós mesmos. Por carência, por costume, por conta do “tal do sistema”, da sociedade… e da nossa enorme distância da gente com a gente mesmo. ⠀

Estou bem? Estou com fome ou querendo tampar outros buracos que não o do estômago? Estou mal? Bom, e ok se a gente está mal um dia ou outro, também. Parte dos nossos problemas hoje em dia é essa forçação de barra de que temos que estar sempre bem. Isso noooo ecxiste. E quanto mais a gente mente pra gente mesmo, mais a gente vai tentando convencer nosso corpo de que naquele prato de comida estão escondidos todas as alegrias do mundo. ⠀

Ué, mas não fui eu mesma que disse que uma vida sem indulgências e sem mimos se torna seca e rígida? Sim. ⠀

Mas existe uma grande diferença entre se mimar e se enganar. E não existe maneira mais fácil de mentir pra gente mesmo quanto na nossa alimentação. Pois a gente não se alimenta só de comida – mas de afeto, de ações, de sentimentos, de pensamentos, de gente. E aí a gente começa a perceber que o buraco no estômago é bem mais embaixo. Ou no caso, mais em cima: pois muitas vezes os buracos estão no coração e na cabeça.⠀

Organismo sobrecarregado, com excesso de toxinas e falta de nutrientes necessários é organismo doente.⠀

E doença não é só cair de cama ou desenvolver um câncer – a maior parte dos desequilíbrios começa com o desânimo, com a falta de vitalidade, com a depressão, com a agressividade, com o individualismo, com a falta de sentido pra vida, com letargia, lentidão, falha nas funções básicas como comer, dormir, ir no banheiro, se reproduzir.⠀

Vai dizer, se não você, muitas das pessoas mais próximas devem ter esses sintomas. E eu estou sendo bem boazinha em relação a esse tema – nem estou falando da quantidade de pessoas que precisa de pílulas mágicas para “curar” esses sintomas aí em cima. Comprimidos pra deixar feliz, pra devolver o ânimo, pra tirar dores, pra melhorar a libido, pra acalmar, pra dormir, pra acordar, pra emagrecer, pra fazer xixi. ⠀


É. A gente está se mantendo equilibrado de maneiras artificiais, ultimamente. E um corpo equilibrado artificialmente é ainda um corpo em desequilíbrio. Mas é um corpo em desequilíbrio que permanece calado. E daí vai ficando cada vez mais difícil ouvir a tal da voz que vem de dentro e nos avisa o que faz bem pra gente ou não. Vamos ficando menos sensíveis, menos observadores, mais alienados. Com nós mesmos e com o mundo ao redor. Numa dessa, os instantes de alegria passam a ser confundidos com entorpecimento.⠀

Comida em demasia, muito açúcar, muita gordura, muita carne, muitas substâncias estimulantes, remédios, aditivos legais e ilegais, no fundo, só dão prazer pela sensação de entorpecimento. E o entorpecimento é o clássico refúgio de quem não quer estar dentro de si mesmo. Seja dentro de seu corpo ou dentro de sua cabeça. E não é só com as coisas que a gente bota pra dentro do corpo que a gente se entorpece. Com as coisas que a gente coloca pra dentro da cabeça é igual.

11/8/2019
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