Vinhos

Vinho & solo.

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“A natureza é o corpo inorgânico do homem – isto é, natureza, na medida em que ela própria não é corpo humano. O vive na ‘natureza’ significa que a natureza é seu corpo, com o qual ele deve permanecer em contínuo intercurso se não quiser morrer. Que a vida física e espiritual do homem está vinculada à natureza significa, simplesmente, que a natureza está vinculada à si mesma, pois o homem é parte da natureza.” Marx, Manuscritos econômicos e filosóficos.

De acordo com o dicionário, vinho é “a bebida alcoólica resultante da fermentação total ou parcial do suco ( mosto ) de uvas frescas”. Só isso ? Pois é. Teoricamente vinho é suco de uva fermentado.

Isso acontece por causa da fermentação alcoólica. É ela que transforma o suco em vinho propriamente dito. As leveduras (um tipo de fungo) se alimentam do açúcar contido no mosto, liberando gás carbônico, energia e álcool. E daí a mágica está feita. Aquele suco de uva meio docinho de repente fica seco e alcoólico. Mais simples do que muita gente imaginava. Afinal, vinho não passa de um alimento fermentado – como os queijos, pães, legumes ou verduras fermentados e etc., alimentos que dependem de processos naturais e de seres vivos – sejam eles bactérias, leveduras, fungos, para existirem. 

Fermentar alimentos talvez seja uma das coisas mais antigas que a gente faz – pelo menos desde que a gente teve a brilhante idéia de plantar e preparar nossa comida. A família é grande. Cerveja, missô, puba, kefir, kombucha, saquê, kimchi, shoyo, cidra, hidromel, iogurte, charcutaria, queijos. As fermentações acompanham a humanidade desde que a gente se conhece por gente, e hoje são considerados como métodos ou técnicas “ancestrais” ou “tradicionais”. Mas no fundo, as fermentações, na maioria dos casos, sempre ocorreram de maneira expontânea – afinal as leveduras estão aí em toda parte, gente. É só esmagar a uva que ela já começa a fermentar. É só misturar água no mel ou água na farinha que eles começam a fermentar.  O homem ao longo do tempo foi vendo que isso, além de ser uma ótima opção de conservação dos alimentos frescos – imagine, queijo é fermentação, e uma maneira de conservar o leite fresco. 

Vinho é uma maneira de conservar as uvas frescas, cerveja é uma maneira de conservar grãos frescos, fermentação lática é uma maneira de conservar legumes frescos. Só que além disso também fomos percebendo que isso tornava os alimentos mais gostosos e em muitos casos, mais digestos: além de no vinho ter o barato do grau alcoólico, claro.  

Falando assim o vinho vira até uma coisa simples, mais fácil de entender e com mais cara de comida do que a gente está habituado. Parece até que a gente mesmo poderia fazer em casa. Pois é. Isso é vinho. O resto é que não é.

Todo o resto que achamos que é vinho, hoje em dia, que maioria considera “vinho”, ou “vinho normal”, aquele que encontramos normalmente nas prateleiras dos supermercados, nas pontuações de revistas, nas lojas, nos restaurantes…. faz tempo que não é só uva fermentada. O que a maioria considera normal, hoje, são vinhos que não passam de um produto industrial alimentício. 

Vinho é um produto agrícola. Vinho vem de uva, uva é uma fruta, uma fruta é um cultivo agrícola. Ou seja, o vinho, muito antes de ‘nascera garrafa, nasce na terra. É lá que tudo começa, e é por isso que é tão importante falarmos de agricultura e de solos antes de começarmos a falar do produto em si, já vinificado, engarrafado, na nossa taça. 

Da mesma maneira que consideramos a agricultura convencional, baseada em monocultura, agrotóxicos e fertilizantes sintéticos  a agricultura “normal” nos dias de hoje – sendo que isso está em vigor a menos de um século e a gente produziu orgânico durante toda nossa vida na terra;  a gente hoje em dia também considera vinho “normal” o vinho convencional – aquele feito a partir de agricultura convencional, elaborado e manipulado para o mercado com técnicas enológicas e aditivos – sendo que produzimos vinho de maneira natural desde que as primeiras uvas foram esmagadas. A agricultura convencional é aquela que a nossa geração e a geração de nossos pais considera a “normal”, em uso mundialmente a mais de meio século, com monoculturas em fertilizantes químicos & agrotóxicos.  

O século XX foi o grande século da ciência, o grande século das guerras mundiais, e também o grande século da lavagem cerebral do mundo industrial. Consideramos hoje em dia “normal” o estilo de vida industrial, e esquecemos que antes da segunda metade do século XX as coisas era bem diferentes, principalmente nas tradições alimentares. Uma vez que paramos de consumir alimentos e começamos a nos nutrir de produtos industriais alimentícios, perdemos a conexão com a origem dos alimentos. E há quem diga que também com a gente mesmo.

No vinho não é diferente. Tanto que muita gente ainda acha que vinho é “natural”, pois “em da uva”. E não tem a menor idéia de como é feito um vinho industrialmente, a quantidade de aditivos sintéticos, técnicas enológicas, conservante, e a agricultura invasiva da maioria das vinícolas. Isso sem contar toda a reflexão sobre autenticidade e terroir. É meio que esquecermos o gosto de uma laranja pois nos habituamos a só tomar suco de laranja de caixinha. Bom, mas é meio isso mesmo que aconteceu com nossa alimentação no geral, não? 

O que aconteceu com a industrialização da comida foi exatamente o que aconteceu com o vinho. Passamos de plantar, colher e cozinhar produtos locais para se abastecer de produtos já prontos em supermercados. Muito se adicionou, muito de modificou e muito se perdeu nos alimentos. Perdemos variedades, perdemos texturas, perdemos densidade nutricional – em prol de um sistema Agricola baseado em grande escala, produtividade e insumos agroquímicos.

O que antes era uma profusão de vinhos familiares, feitos de forma rudimentar e bastante próxima ao natural, foi se tornando parte de um comércio que hoje é industrial. Os vinhos são realmente “fabricados” dentro das vinícolas. As plantações são monoculturas extensivas tratadas com insumos químicos. O vinho é feito à base de modificações de cor, fermentação, adição e retirada de vários componentes, para se transformar em um produto mais aceito pelo mercado, sem margens de risco, padronizado e lucrativo.

O vinho deixou de ser um alimento para se transformar em um produto alimentício. Assim como nossa comida. Mas cabe a alguns chatos ficarem batendo na tecla, apenas mostrando o que realmente são esses produtos. O que tem, como são feitos.

Todo mundo que se dá conta da quantidade de aditivos e modificações existentes nos produtos industriais – vinhos idem – acaba migrando mais ou menos rápido para produtos orgânicos, artesanais, locais, para os vinhos orgânicos, biodinâmicos, naturais. Para uma vida com menos aditivos e menos modificações, no geral. 

A grande verdade é que com informação, as pessoas sabem fazer as escolhas certas.

 

“Existe um ditado antigo que reza: solo sadio — planta sadia — homem sadio. Não existe planta sadia sem solo sadio. Em solos decadentes, doentes, somente podem crescer plantas doentes. E plantas doentes somente fornecem alimentos de valor biologicamente incompletos e inferiores.”.  Ana Primavesi 

 

Importante ressaltar que quando falamos em agricultura e em solos, estamos muito mais preocupados em falar sobre a vida desses solos, sobre os métodos de cultivo, sobre as maneiras de cultivo saudáveis para a planta e para as pessoas que trabalham na terra… do que propriamente analisar os elementos minerais, associar isso com aromas, ou então ficar fazendo recortes de terroir e decorando que pedra tem em que região. Nossa preocupação aqui é com a SAÚDE do solo, coisa que a maioria das vinícolas convencionais e a maioria do mundo do vinho, até hoje, não se preocupa. Pudera, se a maior parte das pessoas não se preocupa nem com a própria saúde nem com a saúde do planeta, porque se preocuparia com a saúde dos solos?

O problema é que tudo o que acontece em cima da terra só acontece por conta do que tem embaixo dela. A vida debaixo do solo permite o surgimento da vida acima da linha do horizonte – incluindo a nossa. É normal para nós, bichos de cima da terra, não prestarmos muita atenção para o que acontece embaixo dos nossos pés – seja debaixo do cimento que pisamos, seja debaixo da grama. Na maioria das vezes, pensamos no solo como um amontoado de terra – e o erro está justamente aí. A maioria de nós vê o solo como uma coisa inerte, imóvel, estática, morta. E ele é qualquer coisa menos isso – o solo é vivo, ou pelo menos deveria  – e é onde tudo começa. 

Mais de 80% da vida no planeta terra está debaixo dos nossos pés, entre minhocas, insetos, aranhas, bactérias e outros microorganismos. Ah, e só falando de minhocas: todos os animais somados, juntos, incluindo a gente, no planeta… não dão a quantidade de minhocas existentes debaixo da terra. Num terroir saudável existem mais de 4 toneladas de vida, que simplesmente ‘ignoramos’ no nosso cotidiano. 

Existem relações entre esses seres vivos do solo e eles são em diversas, inúmeras, incontáveis espécies. Existem também interações entre as raízes, entre as plantas, entre as plantas e os fungos, entre as bactérias e os animais – e ainda sabemos muito pouco sobre isso. São praticamente cidades, civilizações, amontoados muito organizados de bactérias, fungos, criaturinhas microscópicas ou pequeninas como protozoários , artrópodes, vermes de todos os tipos e tamanhos que vivem, comem, comunicam-se, fazem suas necessidades no ambiente e reproduzem todos os dias. Mais do que isso, eles fazem parte de cadeias alimentares e participam de relações simbióticas entre eles mesmos e entre eles e as plantas. O resultado disso é uma rede gigantesca de influências sobre a vida acima da terra – e claro, também sobre os cultivos, e sobre as parreiras, no nosso caso –  consequentemente, sobre as uvas e o nosso vinho. Quem diria que um verminho fosse fazer tanta diferença naquele vinho, não? Pois é, coisas da vida. 

 

“Um organismo é um sistema aberto, no qual a informação flui para o ambiente e vice-versa. Em síntese, cada ser troca com o mundo que o rodeia os elementos que lhe permitem sobreviver.” Revolução das plantas, Stefano Mancuso.

 

Nessa altura do campeonato, você deve estar se perguntando: mas sempre me disseram que pra fazer vinho a uva precisava de um solo ruim, de solo pouco fértil. Bom, aqui temos uma diferença entre solo VIVO e solo FÉRTIL, e solo MORTO e solo INFÉRTIL. Não é a mesma coisa. Solos que consideramos ‘difíceis’, cheio de pedregulho, pouco fértil nas camadas superiores, que a videira tem que se esforçar pra buscar os nutrientes lá embaixão da terra … não quer dizer solo morto. São coisas absolutamente diferentes. Solo morto é o que temos depois de décadas de agricultura industrial, venenos, fertilizantes sintéticos e monoculturas. Calma, já explico. 

Até mesmo por ignorarmos – ou querermos ignorar, na maioria das vezes – todas as relações importantíssimas entre a vida no solo, as plantas e a agricultura ( sem falar no produto final que vai direto pro nosso estômago ) acabamos destruindo nossas terras cultiváveis. Isso, aliado ao progresso, com seus benefícios ambíguos, e um sistema social baseado em produtividade e lucros. Monoculturas em escalas napoleônicas, invenção e utilização em massa de fertilizantes sintéticos, o surgimento de insumos químicos agrícolas ( os famosos agrotóxicos ) …. acabaram fazendo com que o “normal” em uma plantação – leia-se aqui também um vinhedo – fosse um solo sem vida. Pois você pode forjar a saúde de uma plantação artificialmente, da mesma forma que você pode forjar a saúde de uma pessoa artificialmente. 

14/5/2020
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