Divagações

Artigo para The Preserve: Agrofloresta: agricultura + florestas.

( artigo escrito para The Preserve Magazine ) 

Agriculture + forests

“A natureza é o corpo inorgânico do homem – isto é, natureza, na medida em que ela própria não é corpo humano. O viver na ‘natureza’ significa que a natureza é seu corpo, com o qual ele deve permanecer em contínuo intercurso se não quiser morrer. Que a vida física e espiritual do homem está vinculada à natureza significa, simplesmente, que a natureza está vinculada à si mesma, pois o homem é parte da natureza.” Marx, Manuscritos econômicos e filosóficos. 

Antes a organização da vida era local. O homem do campo buscava na natureza aquilo que era fundamental ao exercício da vida e, consequentemente, nutria outros valores em relação à ela, pois constituía a base material de sua existência. A modificação da estrutura produtiva, ao longo do tempo, gerou espaços destinados à agricultura industrial e às monoculturas, remodelando configurações de trabalho em uma lógica de distribuição desigual, transformando os espaços geográficos ao mesmo tempo que sobrecarrega e destrói os solos. Essa nova estética, artificial, modificou a vida acima e abaixo da linha do horizonte, substituindo a natureza “natural” por uma natureza antropomorfizada. 

Adotamos um modo de cultivar e de comer que extermina a vida do solo, a biodiversidade e as tradições alimentares locais. Destruímos a vida dentro de nossos corpos com alimentos industriais e antibióticos, e destruímos a vida do solo com fertilizantes sintéticos e pesticidas. Mas embora nos esqueçamos com frequência, a natureza não está no ‘lá fora’. A natureza não está lá fora nos bosques, na Amazônia, num imaginário distante das florestas. Nós somos essa própria natureza, e o que fazemos com nossos solos, águas e ar, o que fazemos os outros, com as plantas e os animais, é apenas reflexo do que fazemos conosco mesmos. 

O próprio conceito de agricultura é muito recente para nossa espécie. Nos tornamos agricultores apenas nos últimos dez mil anos, mas o género “homo” habita o planeta a mais de 2,3 milhões de anos. Se pensarmos em hominídeos, essa escala de tempo se alarga para 15 ou 20 mil anos na superfície terrestre.

O desejo de plantar o que queremos comer é a base do pensamento agrícola – inverso à ação de coletar ou de forragear – que é sair em busca de seu alimento. A agricultura possibilitou a fixação de nossa espécie em aldeias, em cidades, e os alimentos que antes tinham que ser buscados dentro do próprio ambiente natural passaram a crescer em perímetros próximos e delimitados. Não é à toa que muitos pensadores descrevem a agricultura como uma “domesticação” das plantas. 

A nossa percepção sobre a existência humana moldou nossos modos de vida, nossos modos de produção e de consumo. Estes, por sua vez, moldaram as paisagens. Fomos levados à uma percepção de mundo superficial e fragmentada, utilitarista e linear, em uma constante racionalização do mundo vivido. Nós confinamos animais em fazendas e confinamos arte a museus. Confinamos pessoas em apartamentos, plantas em campos de cultivo e literatura em bibliotecas. 

O que chamamos de ‘racional’ ou de ‘pensamento científico’, que dominou todo o século XX, abstraiu da experiência e dos fenômenos da natureza seu caráter de unidade. Nos desconectamos de nosso entorno – portanto, de nós mesmos – nos dividindo na falsa trindade do eu, do outro e da natureza, que não se relacionam nem se identificam entre si. 

Neste ponto específico na história, onde o homem passou a impor as suas vontades ao meio ambiente – em especial através da domesticação de espécies – foi definitivo para nossa a estruturação social, cultural e filosófica. Eu planto o que eu quero comer. Eu controlo as espécies ao meu redor. Minha vontade é maior do que a vontade da natureza – da qual eu não faço mais parte. 

“ The Health Of Soil, Plant, Animal And Man Is One And Indivisible.” Sir Albert Howard 

Dez mil anos depois, baseada em monoculturas, fertilizantes sintéticos e pesticidas químicos, vimos o surgimento da agricultura convencional, industrial ou química. 

A agricultura industrial tomou forma no mundo por volta da segunda metade do século XX: é a a agricultura que hoje consideramos “normal” no mundo inteiro embora, até mesmo na curta linha do tempo da história agrícola, ela seja extremamente recente. 

O XX foi o grande século da industrialização do nosso modo de vida. Mudamos os modos de produção, de consumo, de cultivo, mudamos o nosso pensamento, a alimentação, as idéias sobre sociedade, valores e saúde, o trabalho. Fomos moldados por duas guerras mundiais, por ditaduras, pela revolução verde, por avanços tecnológicos e científicos em progressão astronômica, por uma agricultura que se transformou em agronegócio e por alimentos que se tornaram produtos industriais alimentícios.

A mudança de um conceito de agricultura tradicional e integrada para a agricultura “química”, embrião da agricultura convencional de hoje, se deu ainda no século XIX, a partir principalmente dos estudos de cientistas como Saussure (1797-1845), Boussingault (1802-1887) e Liebig (1803-1873).

Antes do advento da agricultura industrial o homem cultivava de maneira muito mais próxima ao que conhecemos hoje como manejo ecológico, baseado em policultura, subsistência, pequenas propriedades, técnicas e conhecimentos ancestrais, cultivo e consumo majoritariamente locais, espécies de plantas e animais nativos, integração entre os sistemas. E em menos de um século o que foi o modo de cultivar tradicional de milênios na história da alimentação humana, se tornou um cultivo considerado “alternativo”. 

Liebig defendia que o aumento da produção agrícola seria diretamente proporcional à quantidade de substâncias químicas incorporadas ao solo, negando a teoria do húmus, a integração dos sistemas e a importância dos ciclos de vida e  da decomposição da matéria orgânica na nutrição do solos e das plantas. 

Embora comprovadamente falhas, as teorias de Liebig são um exemplo do típico paradigma linear, racional e “lógico” da ciência dos séculos XIX e XX. 

Os estudos de Liebig e a descoberta da sintetização de moléculas décadas antes por Fritz Harber e Wilhelm Ostwald deram abertura para uma nova era da agricultura “química”. Fertilizantes sintéticos, assim como boa parte da indústria química, farmacêutica e das armas de guerra só existem graças à esses cientistas e aos processos de Haber_Bosh e de Ostwald.  

O processo de Haber-Bosch ou de síntese do amoníaco foi desenvolvido laboratorialmente por Fritz Haber em 1908 e depois industrialmente por Carl Bosch entre 1912 e 1913; sendo usado pela primeira vez em escala industrial na Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial. O processo de Ostwald é o processo comercial inventado por Wilhelm Ostwald,  patenteado em 1902 e usado para a produção de ácido nítrico (HNO3). Esse processo utiliza a amônia (NH3), sintetizada pelo processo de Haber-Bosch.

A fertilização sintética marcou o início de todo um novo pensamento agrícola, assim como o abandono progressivo de técnicas empíricas, tradicionais, locais e integradas de cultivo.

Entre o final do século XIX e início do século XX, Louis Pasteur (1822-1895), Serge Winogradsky (1856-1953) e Martinus Beijerinck (1851-1931) nos apresentaram o mund dos microorganismos. 

Fungos, bactérias, leveduras. Até então não conhecíamos esse misterioso mundo de seres invisíveis que detonam processos importantíssimos dentro e fora de nosso corpo. Esses cientistas foram precursores do estudo da microbiologia e, dentre muitas contribuições, acabaram por contrapor o pensamento agrícola de Liebig, ressaltando a importância da matéria orgânica e dos microorganismos na agricultura e no desenvolvimento das plantas. 

Infelizmente as teorias de Liebig impactaram tanto nosso modo de pensar e entender a agricultura que mantiveram sua força até os dias de hoje, dando base  para o mercado de fertilizantes sintéticos do atual sistema produtivo, no qual a lógica vigente ainda é a da relação diretamente proporcional entre insumos químicos e produtividade. 

Estima-se que 2 em cada 5 pessoas não teriam sequer nascido se não fosse a sintetização do nitrogênio e posterior invenção do fertilizante sintético. Não há dúvidas de que foi uma das grandes descobertas da ciência e que sem ela não teríamos o aumento tão grande, em tão pouco tempo, da produção de alimentos. O problema é que, embora tenha sido essencial para que essa produção de alimentos acompanhasse o aumento populacional e a crescente aglomeração de pessoas em centros urbanos, isso também acabou por impôr, de vez, o ritmo frenético do homem ao ritmo da natureza – desencadeando um crescente desequilíbrio dos ciclos naturais, bem como das interações entre as espécies e os reinos.

“… de um ponto de vista superior, os prazeres e os sofrimentos do indivíduo estão intimamente ligados ao bem estar e ao infortúnio de todo o universo. Há aí um caminho que conduz à convicção de que ele prejudicará o mundo inteiro, e todos os seres nele existentes, caso não desenvolva adequadamente suas próprias faculdades. Rudolf Steiner, A Ciência Oculta.

Tudo o que acontece acima da terra só é possível por conta do que acontece embaixo dela. A vida debaixo do solo permite o surgimento da vida acima da linha do horizonte – incluindo a nossa, embora seja normal para nós, bichos ‘de cima da terra’, não prestarmos muita atenção para o que  acontece debaixo de nossos pés; e em 1920 Rudolf Steiner já nos alertava sobre a degradação dos solo.

Agricultura biodinâmica, permacultura, agricultura natural, agricultura orgânica, agricultura sustentável, agroecologia, agroflorestas, sistemas sintrópicos. Temos a tendência um tanto ingênua de pensar que a agricultura ecológica é um movimento moderno, mas movimentos de resistência, todos eles, surgem concomitantemente aos sistemas que contestam. 

As bases do que chamamos de agricultura orgânica moderna surgiram ao mesmo tempo que a própria agricultura industrial e química, entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX – em sua grande parte foram inspiradas pela agricultura tradicional praticada durante milênios por nossos antepassados. 

Publicado em 1854, o livro “ Walden – ou Life in the Woods” , de Henry David Thoureau ( 1817, 1862 ) escritor e filósofo norte-americano,  é um clássico do pensamento ecológico moderno, e narra o experimento pessoal de Thoureau em uma vida isolada e auto sustentável nos bosques. 

Sir Albert Howard (1873-1947), no Reino Unido, foi fundamental na construção dos conceitos de agricultura orgânica moderna. Baseou muito de seus estudos em experiências práticas e in loco com a agricultura tradicional indiana. Publicou em 1940 o livro “An Agricultural Testament”. 

Rudolf Joseph Lorenz Steiner 1861-1925, austríaco, uniu filosofia, agricultura, clarividência, arquitetura, educação e medicina na formação do que hoje conhecemos como agricultura biodinâmica, ensino Waldorf e medicina antroposófica. A agricultura biodinâmica é essencialmente uma prática restaurativa dos solos, prezando pelo equilíbrio entre o homem, os reinos da natureza e as forças cósmicas.

No Japão da década de 1930, Mokiti Okada ( 1882, 1955 ), fundador da igreja messiânica, desenvolveu a chamada “agricultura sem fertilizantes”, ou “agricultura natural“, propondo um cultivo harmônico com o meio-ambiente e o equilíbrio da alimentação, saúde física e espiritualidade. 

O termo “orgânico” apareceu no mundo quando Jerome Irving Rondale, baseado nas ideias de Sir Albert Howard, publica em 1948 o livro “The Organic Front” (A Frente Orgânica). Ele lançou também a revista “Organic Gardening and Farm” (Jardinagem e Fazendas Orgânicas), que se tornou a partir dos anos 1970 um baluarte do movimento de agricultura alternativa norte americana. Nesta mesma época, surgem no mercado europeu os primeiros produtos com a denominação de orgânicos e em 1972 nasce a International Federation of Organic Agriculture Movements IFOAM (Federação Internacional do Movimentos de Agricultura Orgânica). 

No Japão da década de 1970, surgia a agricultura selvagem ou método Fukuoka, feita por Masanobu Fukuoka ( 1913, 2008 ) – agricultor,  microbiólogo e filósofo. Sua técnica de cultivo não requeria máquinas, produtos químicos e pregava pouquíssima remoção de ervas “daninhas”, além de não poluir nem utilizar combustíveis fósseis. Fukuoka admite que a natureza é perfeita exatamente como ela é, e quanto mais próximos disso conseguirmos chegar, melhores serão nossos resultados.

Em 1962 é publicado o livro Primavera Silenciosa, de Rachel Carson ( 1907, 1964 ), questionando o modelo agrícola convencional, a crescente dependência do petróleo e o uso indiscriminado de substâncias químicas e tóxicas no cultivo.

Em 1970, dois australianos dedicados ao design de modelos de uso sustentável da terra cunharam o termo “permacultura”: eram eles David Holmren ( 1955 ) e Bill Mollison ( 1928, 2016 ).

20/7/2021
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