Divagações, Vinhos

Leveduras “selvagens” x “selecionadas”

 

 

As leveduras são fungos, na maior parte unicelulares. Sim, eu pra saber mais de vinhos eu sempre digo que aquela aula de biologia que você cabulou quando criança acaba fazendo falta. A maioria das leveduras se encontram em ambientes com alto teor de açúcares, tal como néctar de flores, nas folhas, no solo ou superfície de frutas. Motivo? Elas são viciadas em açúcar. É a comida preferida delas. É, achou que era só você, né? Não, as leveduras também.

 

            Existem, aproximadamente, 350 espécies diferentes de leveduras, separadas em cerca de 39 gêneros. As leveduras fermentativas – que atuam no processo de fermentação’  são usadas pelo homem há milhares de anos, na produção alimentos e bebidas, como a cerveja, o pão,  e o vinho.

 

Esse bichito aqui é a levedura. 

 

 

Mas foi somente no século dezenove que esses pequenos funguitos foram devidamente reconhecidos pelo seu trabalho, quando se descobriu  a natureza biológica dessa “coisa” que fazia com que a fermentação fosse possível. Eram serzinho vivos. E úteis.

 

            A principal estrela da fermentação alcoólica, a Saccharomyces cerevisae, é uma levedura ascomicética. Sabido isso, por favor esqueça essa informação e não me solte nenhuma dessas barroquices biológicas em uma degustação, muito menos em um jantarzinho de família. Só demonstre seu conhecimento microbiológico se alguém perguntar. Senão você corre o risco de passar por chato.

 

Para fermentar o vinho, são usadas as leveduras presentes no próprio vinhedo, geralmente chamadas de selvagens ( fiquem tranqüilos, elas não mordem. No máximo elas vinificam da maneira que elas querem, sem que você tenha muito controle sobre elas ), ou então leveduras selecionadas em laboratório, selecionadas pelos humanos por serem mais fortes, para fazerem uma fermentação mais estável, ou então para dar uma linha aromática específica para o vinho.

 

Infelizmente hoje em dia a maioria dos aromas que identificamos como “característicos” do vinho daquela região, na verdade se originam por leveduras selecionadas, e não por de leveduras naturais daquele terroir. Porque? Pois o vinho hoje em dia não é mais um produto artesanal. A grande maioria é feita em escala industrial – e na escala industrial, não podemos correr o risco. Temos que ter controle absoluto sobre todas as etapas. E se estamos lidando com seres vivos que podem mudar de ano para ano, esse controle vai pra cucuia – é a natureza mandando. Essa é uma das grandes razões do emprego de leveduras selecionadas, em vez de usar as leveduras do próprio terroir.

 

 

Essas são as leveduras selecionadas, que vem num saquinho para serem inoculadas na hora da fermentação. 

 

Muitas vezes, se aprofundando na história, os vinhedos também são tão carregados de produtos químicos, como pesticidas, hebicidas – todos os idas – que esses veneninhos acabam matando também a fauna…. microbiológica – e os fungos morrem nessa leva também. Se a levedura está capenga,  ela fica frágil e não vai trabalhar direito – daí não vai fermentar o vinho como deveria. Nesses casos, também se adicionam leveduras selecionadas – pois ocuparão o lugar das leveduras debilitadas do vinhedo.

 

Na maioria dos casos essa matança é intencional – é só despejar uma quantidade considerável de SO2 nos vinhedos, para matar as leveduras rapidinho. Isso acontece quando o enólogo quer um controle absoluto da sua fermentação, uma padronificação de ano a ano e maior estabilidade – pois como eu disse, as leveduras naturais são…. naturais, e como qualquer ser vivo, imprevisíveis – elas podem fermentar de maneiras diferentes ano para ano. Mais ainda, de ano para ano a fauna microbiológica pode se alterar, e algumas leveduras que estavam por ali podem não estar…. e algumas que não estavam, podem estar – o que deixa o processo de fermentação e o resultado final, totalmente diferente.

 

Rodrigo, da Hummus, em Portugal, que só usa leveduras naturais. 

 

 

Agora, sim, se pedirem minha opinião, isso é um vinho de terroir:  que respeita seu terreno e o que a natureza daquele terreno proporcionou: inclusive as leveduras. De que adianta falar em vinho de terroir se você matou as leveduras e colocou outras que não tinham nada a ver com a história?

 

E sim, a grande parte dos aromas que conhecemos e reconhecemos como característicos de uma região específica ( como Bordeaux, Sauvignon Blanc do Chile, etc, etc…..)  muitas vezes são aromas originários de leveduras selecionadas. Indo mais a fundo, grande parte do que conhecemos como aromas característicos dos vinhos, são vinhos feito com adição ( infelizmente, às vezes muito alta ) de SO2, que é o conservante  que se usa no vinho. Quando temos vinhos sem adição de SO2 ou com adições mínimas, os aromas são muito diferentes. E daí vem o questionamento: afinal, o que é um vinho que reflete o lugar de origem? Bom, tem muito pano pra manga essa discussão, que engloba procedimentos industriais versus artesanais, utilização ou não de produtos químicos e nível e intervenção nos vinhedos e vinificação.

 

Espumantes em processo de fermentação na garrafa. Esse é um espumante método ancestral, que só tem uma fermentação e “aprisiona” as borbulhas. Método querido pelos adoradores de levedura natural – pois no regulamento de champagne está escrito que você é obrigado a inocular leveduras selecionadas na segunda etapa da fermentação. 

 

Essa discussão já gerou muito pano pra manga. Tipicidade de aromas e sabores versus leveduras naturais ou selecionadas. Fazendo um paralelo que não é totalmente  correto, mas que ilustra mais ou menos o que seria um vinho de levedura natural e um vinho de leveduras selecionadas, é um pote de iogurte sabor morango que você compra no supermercado e um pote de iogurte de morango que você fez em casa e bateu com as frutas em casa. Imagine agora que uma geração inteira de degustadores se formou reconhecendo o aroma de morango artificial do iogurte como sendo o aroma característico do iogurte de morango. Ok, é um exemplo bem exagerado, pois no caso das leveduras elas não vão “dar” um aroma artificial ao vinho.  Mas elas vão fazer, dependendo da levedura que você colocar no vinho, com que ele siga uma linha de aromas específicas.

 

E isso pra mim não é terroir. Me crucifique quem quiser. Mas explico: se você pegar um pacote da levedura italiana selecionada BM45, recomendada para Sangiovese, você pode achar algo escrito como ” perfeito para se criar um estilo de vinho italiano tradicional” . Então, pergunto de novo: dá pra falar em tipicidade de terroir ou de casta? Pra mim, isso é iogurte de morango industrializado. Mas é por isso que muita gente me chama de radical.

 

 

Por essas e outras que sou fã incontesta da fermentação com leveduras naturais: elas estão – e elas são o terroir. Por isso a fermentação vai dar origem a um vinho com aromas e sabores que, aí sim, podemos dizer que são típicos, autênticos e refletem o lugar de onde vem.

 

As leveduras selvagens, indigenas, naturais – chame como quiser – não estão só na casca da uva, como muitos acreditam. Elas estão lá também, mas estão na adega, na mão, na roupa das pessoas, nos equipamentos, no solo do vinhedo. Por isso cada terroir tem seu “grupinho” de leveduras único – que pode chegar a mais de centena de tipos, de colônias diferentes, que se misturam e se sobrepõe umas as outras de ano para ano. 
27/6/2015
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