Divagações, Vinhos

A Enoteca SaintVinSaint fecha suas portas.

Embora já tenha falado um pouco sobre isso, muitas pessoas estão me perguntando sobre os motivos do encerramento da Enoteca, depois de quase 20 anos de trabalho.

O assunto é muito mais complexo do que um texto simples pode explicar. Mas tentarei da melhor maneira.

A Enoteca foi o primeiro restaurante no Brasil – provavelmente também na América Latina – a trabalhar com vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos. Durante essas duas décadas, inaugurou o movimento de vinhos naturais no país. Foi também o primeiro, e provavelmente o único, a conseguir fechar o ciclo de produção e consumo: alimentos 100% orgânicos, insumos provenientes de pequenos produtores, hortas próprias, reciclagem de óleo para fazer sabão, lixo zero, sementes crioulas, fermentações que visavam conservação, reaproveitamento e saúde dos comensais. Uma cozinha sazonal que deixava o ego do chef de lado e olhava para o que a natureza estava nos entregando.

Foram 20 anos de resistência e de uma preocupação infindável em ajudar as pessoas que estavam na terra produzindo de maneira limpa continuassem na terra produzindo de maneira limpa. Tanto vinhos quanto comida. Temos muito orgulho da nossa trajetória, que inspirou milhares de pessoas, deu início ao movimento do vinho natural – hoje consolidado no Brasil – e ajudou centenas de famílias que produzem de maneira justa pelo país.

A grande questão é que são poucas as pessoas que se importam realmente com isso. 

Se fosse o contrário, iniciativas sustentáveis teriam filas na porta. Mas o que vemos é exatamente o oposto. 

Restaurantes são impelidos a gastar horas produzindo vídeos para redes sociais, multiplicando colabs e eventos infinitos para alimentar a sede do novo a qualquer custo, além de simplificar e emburrecer os seus discursos até esvaziá-los por completo na tentativa de adequação às novas linguagens e comportamento do consumidor de tela. Tudo isso quando deveríamos estar investindo na educação da nossa própria brigada, na pesquisa de ingredientes, no estudo da carta de vinhos – e em todas as coisas que realmente fazem de um restaurante um lugar de verdadeira restauração. Digo por experiência própria, aconteceu comigo.

A cena do movimento natural, em muitos lugares do mundo, virou sinônimo de fotos sexy, estilo decadente chique e muito bem tiradas, Champagnes e Juras caríssimos ou petnats turvos, ótimos DJs, design de ponta, storytelling preciso – nem sempre verdadeiro, mas quem se importa –  e rótulos bonitos. Sem qualquer grande preocupação com a origem do alimento, das uvas ou das pessoas que são a base da cadeia.

Não que eu seja contra rótulos bonitos, Champagnes e dj — pelo contrário, adoro Champagne, djs e os rótulos bonitos. Mas um movimento tão complexo quanto o do vinho natural não pode se resumir a isso. Ou, ao menos, não deveria.

O cenário não é dos mais animadores quando olhamos para o setor de alimentos e bebidas: desinformação, falta de interesse, produtores pioneiros do movimento passando por dificuldades financeiras no mundo inteiro, alguns arrancando parte de suas videiras. 

Um setor desunido em que profissionais e produtores continuam disputando espaço onde deveria haver colaboração.

Vemos estabelecimentos ligados ao vinho natural com discurso que não é condizente com suas cozinhas ou práticas de trabalho: ingredientes e cozinhas convencionais, pratos repletos de aditivos, produtos industrializados e alimentos cheios de veneno comprados de distribuidores massivos. Mas as montagens lindas, modernas e alinhadas às tendências estéticas mais descoladas fazem com que esqueçamos de onde veio a comida.

Vemos eventos de vinho patrocinados pelas mesmas empresas que já foram relacionadas a escândalos de trabalho análogo à escravidão, à vista de todos, sem que ninguém reflita sobre o assunto –  afinal, tudo já foi esquecido depois do último reels de humor relacionado ao mundo do vinho natural, ou do último evento de sucesso nas redes que reuniu influencers naquele novo endereço que contrata a mesma assessoria de imprensa de sempre.

A questão aqui, entendam, não é julgamento, mas reflexão: até onde as estruturas que julgávamos assertivas para dar força ao movimento ainda são válidas? Vejam bem, eu mesma toquei um restaurante por 20 anos. Não é fácil me perguntar isso. E eu mesma segui, lancei e errei em muitos de meus caminhos e de minhas escolhas. 

Quando olho para o setor de restaurantes e bares, me parece cada vez menos provável que essas estruturas consigam sustentar os pilares de uma mudança de paradigma na alimentação, na maneira de beber e de consumir. Pelo menos da forma como estão construídas, e na forma como o próprio sistema impõe que se comportem para permanecer financeiramente saudáveis. Somos obrigados a nos adaptar a um sistema que não acreditamos para seguir vivos. É o jogo.

Como podem imaginar, são muitos os fatores que levaram à minha decisão de encerrar a Enoteca. Obviamente, um deles é o financeiro: desde a pandemia tornou-se insustentável manter vivo esse projeto.

Dívidas que parecem eternas, o padrão de consumo de vinhos que mudou no país e no mundo, o  nosso bairro que também mudou em sua atmosfera. Quem costumava sair para comer já não sai mais; quem não saía agora procura novos restaurantes. O crítico de vinhos foi substituído pelo tiktoker, e já não sabemos em qual feriado o restaurante vai lotar ou esvaziar, pois até os sistemas de trabalho remoto alteraram nossas expectativas de fluxo de público. O consumo de vinhos que despenca em nível mundial, o preço dos produtos que aumenta vertiginosamente – assim como o dos próprios vinhos nacionais e importados – , o custo fixo de manter uma empresa que cresce sem parar: luz, água, aluguel, ar condicionado, impostos.

A tudo isso se soma a crescente superficialização do consumo e da informação, além da necessidade cada vez maior de adaptação às novas estruturas do marketing digital – corrida e bolsos sem fim na tentativa de estar, todos os dias, na lembrança de um público que está saturado de informações e estímulos.

As mudanças climáticas afetam a cidade ( nem vou entrar nas consequências óbvias para a produção de vinhos, alimentos e saúde ), assim como o vai e vem dos clientes. As tempestades cada vez mais agressivas, aquelas mesmas que não queremos relacionar com o que colocamos no prato nem com os venenos que colocamos na terra, deixam restaurantes e bares sem luz por tempo suficiente para comprometer o faturamento de todo um mês. 

Ao mesmo tempo, ondas de bebidas falsificadas ou de informações distorcidas circulam nas redes sociais e alimentam o medo dos consumidores. A nova geração já não quer beber álcool, parte por consciência ambiental e de saúde, parte por falta de dinheiro. A queda no consumo, a mudança dos hábitos alimentares, a precarização do trabalho e a volatilidade cambial também atingem diretamente a cadeia de restaurantes, bares e produtores. O resultado é um setor frágil, onde cada imprevisto – climático, político ou tecnológico – pode ser o suficiente para colocar em risco não apenas um negócio, mas uma cultura inteira de pequenos e médios estabelecimentos. 

Outros detalhes também pesam na história da Enoteca. Em 20 anos nosso público amadureceu, teve filhos e mudou seus hábitos. A boa notícia é que hoje essas mesmas pessoas têm mais acesso à compra direta de produtores e importadores – e reconheço feliz que tivemos parte da “culpa” por essa mudança, já que sempre incentivamos a conexão sem intermediários. Além disso, a cidade ganhou muito mais estabelecimentos ligados ao vinho natural, o que considero extremamente positivo: quanto mais gente envolvida, mais forte e diverso se torna o movimento. No entanto, é evidente que o público consumidor não cresceu na mesma proporção, o que inevitavelmente gera um esvaziamento para aqueles estabelecimentos que já não contam mais com o atrativo da novidade.

O setor de restaurantes sofreu intensamente nos últimos anos, e as mudanças ocorridas nas últimas décadas estreitaram as margens a ponto de tornar os negócios de A&B muito pouco rentáveis. Pequenos, médios e familiares enfrentam dificuldades cada vez maiores para manter suas portas abertas. Ter um restaurante há 20 ou 30 anos era muito mais rentável do que hoje, e não podemos esquecer que sustentabilidade também significa garantir que um projeto consiga se manter financeiramente saudável. Isso não é culpa de ninguém. São fatos. As coisas mudam.

Mas com margens cada vez menores, preços de insumos e custos fixos cada vez mais altos, ficou quase impossível manter o meu próprio discurso de democratização do vinho natural e da comida orgânica acessível. 

O que vi nos últimos anos foram vinhos e pratos no meu próprio restaurante que, embora eu não pudesse cobrar mais barato, para mim soavam absurdamente caros. Como falar em vinho do dia a dia, como falar em vinho como alimento, se os vinhos da minha carta não conseguiam ficar abaixo de R$200? Nesse cenário, parte do público que tinha poder de compra e escolhia vinho natural e comida orgânica por consciência deixou de ter condições de fazê-lo. Muitos amigos e clientes antigos deixaram de consumir porque simplesmente não cabia mais no bolso.

Com preços mais altos, margens menores e consumo em queda, me vi tendo que negociar valores cada vez mais baixos com produtores familiares que, embora fizessem isso por consideração à Enoteca e à amizade pessoal, sabiam que aqueles cinco reais fariam diferença na economia da família no final do mês. Isso sempre me doeu. E pouco a pouco, dessa maneira,  a Enoteca deixou de ter poder de compra e, consequentemente, de ajudar financeiramente os produtores que sempre foram a coluna vertebral do nosso projeto.

A Enoteca nunca foi apenas um restaurante: sempre foi sobre manter quem cuida da terra na terra. Mas isso só é possível quando esses produtores conseguem vender seus produtos e continuar produzindo de maneira digna. 

Incontáveis estabelecimentos relacionados à sustentabilidade e ao vinho natural fecharam nos últimos anos – em especial, neste ano de 2025 – e isso não acontece só no Brasil. Grandes restaurantes na Europa e nos Estados Unidos, assim como em países vizinhos da América do Sul, também vêm fechando as portas. Isso é reflexo da nossa sociedade e dos nossos tempos.

E por todos os motivos acima citados, cada vez mais me pareceu não fazer sentido que a Enoteca continuasse aberta. 

A verdade é que talvez o mundo não precise de mais um restaurante, e sim de outras iniciativas ligadas à educação, às vendas diretas entre consumidor e produtor, à mudança das leis de alimentos, saúde e vinho no país, iniciativas que levem a um consumo mais consciente, à humanização do nosso cotidiano e à lembrança do que realmente importa nessa vida.

A Feira Naturebas, “filha pequena” da Enoteca, com 13 anos de história, continuará com força total e com a missão de colocar quem compra, quem bebe e quem come frente a frente com os produtores que cuidam da Terra. Ela se tornou, ao longo dos anos, a maior e mais respeitada feira de vinhos naturais da América Latina, atraindo mais de 3000 pessoas a cada edição e produtores do mundo inteiro, de maneira independente e muito consciente de seu propósito e ética.

A partir do ano que vem, a Naturebas também se torna escola, importadora, distribuidora – um projeto que vai abranger produtores e profissionais ligados ao movimento do vinho natural ao redor do mundo, além de assumir novamente papel de ponte entre os pequenos produtores e os consumidores. Pois se a Enoteca perdeu seu poder de compra e de auxílio aos vinhateiros, a Naturebas ainda pode ter essa força. Talvez até com mais amplitude.

Parte do colapso do movimento do vinho natural, acredito eu e muitos pioneiros do mundo natural, se deve justamente à falta de profissionais que consigam transmitir o que de fato representa a filosofia do vinho natural: agricultura limpa, comida de verdade, saúde, humanidade e cultura.

Talvez caiba a nós, da primeira geração, entender que precisamos formar a próxima. E é nisso que trabalharei agora.

No âmbito pessoal, depois de 20 anos à frente de um projeto desse porte, acredito que cumpri minha missão. Devemos saber encerrar ciclos com a mesma alegria e a mesma consciência com que os iniciamos, e morte da Enoteca servirá de adubo para as próximas gerações, e nossas lágrimas regarão a terra até que novos brotos cresçam – frescos, cheios de energia nova e energia transmutada.

Peço perdão pelo tom sem filtros – como de costume em meus textos. Mas lembrem-se de que o encerramento da Enoteca é também, para mim, um luto. E todo luto é um processo complexo, pois embora o legado permaneça, uma parte de mim também morre junto com as portas do restaurante que se fecham, para abrir espaço para que outras versões de mim mesma possam nascer. Não é fácil, não é tranquilo, não é falsamente alegre. São muitos os sentimentos envolvidos.

Encerramos as atividades permanentemente no dia 31 de outubro. No dia 1º de novembro, faremos um bota-fora final de todas as peças de decoração, itens de cozinha, móveis e utensílios, a partir das 11h da manhã. 

Depois das 18h, nesse mesmo dia 01.11, será a hora de enxugar as lágrimas, abrir todas as garrafas de vinho da cidade e festejar os 20 anos de um projeto que mudou a forma como os brasileiros encaram o vinho. 

Receberemos os amigos com música do DJ Gregory Chastang, amigo responsável pela trilha sonora de tantos dias e festas na Enoteca ( vejam só, eu disse que gostava de Djs ) para nos despedirmos da Enoteca ao melhor estilo “funeral com festa”, coincidentemente, durante o final de semana de Finados. É só aparecer. Tragam suas garrafas de vinho, seus champagnes, e dancemos.

Dancemos até estarmos embriagados de vinho, de poesia e de virtude – e até nos lembrarmos do que realmente trata o movimento do vinho natural.

23/10/2025
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